Agentes da ditadura que ainda atuam na polícia de SP
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Delegado Circeu Gravina está na ativa no governo Alkimin em SP |
Carlos Alberto Augusto e Dirceu Gravina,
agentes da repressão subordinados a Ustra e Fleury, ainda trabalham na Polícia
Civil de São Paulo e vêm sendo investigados pela Comissão da Verdade paulista.
Legitimidade de sua permanência na ativa é questionada por especialista
britânico em ditaduras latino-americanas.
LUCAS FERRAZ
“EI, FILHO, você sabe o que acontecia com um comunista
que chegava atrasado ao ponto? ‘Caía’, tá entendendo!? ‘Caía’!”.
As palavras de boas-vindas, referência à expressão
usada na ditadura para guerrilheiros que eram presos, são dadas por Carlos
Alberto Augusto, delegado da Polícia Civil de São Paulo, ao constatar o atraso
de sete minutos do repórter.
O ponto de encontro é o bar da Associação dos
Delegados da Polícia do Estado, no décimo andar do conjunto Cinerama, uma
galeria decadente na avenida Ipiranga, no centro de São Paulo.
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Cabo Anselmo |
Augusto é um dos últimos remanescentes da “tigrada”,
como eram chamados os agentes da repressão, ainda atuantes no serviço público.
Ex-agente do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), é acusado de
envolvimento em desaparecimentos e torturas. Ajudou a organizar a mais
sangrenta chacina do período, o massacre da chácara São Bento, em Pernambuco,
em 1973. Na ação, com participação do agente duplo Cabo
Anselmo (foto), seis militantes da organização armada VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária) foram executados.
Hoje, Augusto é delegado de segunda classe no Deic
(Departamento de Investigações sobre Crime Organizado), investigando crimes
contra o patrimônio. Não é o único remanescente dos anos de chumbo na Polícia
Civil paulista.
Dirceu Gravina que ocupa cargo burocrático na
seccional de Presidente Prudente, no interior paulista, atuou no DOI-Codi
(centro de repressão do Exército). Citado em casos de tortura, é suspeito de
envolvimento na morte de presos políticos.
COMISSÃO Tanto Augusto como Gravina negam ter
praticado os crimes. Os dois são alvo da Comissão da Verdade paulista,
instalada em fevereiro na Assembleia Legislativa para investigar torturas,
mortes e desaparecimentos no Estado.
Diferentemente da Comissão da Verdade nacional, que
investigará violações aos direitos humanos de 1946 a 1988, a paulista focará a
última ditadura (1964-85).
Levantamento realizado pela Comissão de Mortos e
Desaparecidos Políticos de São Paulo cruzou listas de torturadores elaboradas
por organizações de direitos humanos com os nomes de mais de 30 mil policiais
civis da ativa no Estado. Sobraram os dois. Os demais já morreram ou se
aposentaram -Augusto, 68, e Gravina, 63, devem se aposentar até os 70.
Com as comissões da verdade, o país lidará como uma
questão pouco discutida: é legítimo que agentes acusados de crimes e violações
aos direitos humanos na ditadura continuem servindo ao Estado em tempos
democráticos?
“Se a Polícia Civil tem dois torturadores, isso é
nocivo do ponto de vista do Estado de direito”, diz o britânico Anthony
Pereira, diretor do Instituto Brasil no King’s College, em Londres.
Para ele, “a Lei da Anistia não entraria nessa questão
porque trata de responsabilidade criminal, e não da permanência em cargos
públicos”. Pereira comparou ditaduras do Brasil, da Argentina e do Chile em
“Ditadura e Repressão” (Paz e Terra, 2010).
O livro aborda o modus operandi da repressão e a forma
como, em tempos democráticos, polícia e Judiciário se livraram de agentes
cúmplices ou que colaboraram com as ditaduras. O Brasil foi o país que menos
fez neste quesito.
Nos próximos anos, a Comissão da Verdade nacional
também abordará a atuação dos agentes paulistas. José Paulo Cavalcanti Filho,
um dos sete membros, disse que as investigações estaduais serão fundamentais
para municiar o trabalho federal. A comissão paulista já acertou parceria, e
Cavalcanti Filho diz que é bem-vinda a ajuda de outros Estados.
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Delegado Fleury |
METRALHA “Fleury é um verdadeiro herói nacional”, diz
Carlos Alberto Augusto, acomodado no bar da associação dos delegados. Ele fala
do delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-79), um dos chefes do Dops e um dos
nomes da repressão mais associados à morte e à tortura. Augusto atuou no Dops
de 1970 a 1977, subordinado a Fleury. Ele venera o ex-chefe a ponto de
organizar encontros e missas em sua memória.
Foi no Dops que Augusto ganhou a alcunha de “Carlinhos
Metralha”, como é conhecido pela esquerda. Ele detesta o apelido, difundido
pelo ex-preso político Ivan Seixas, que o viu andar com uma metralhadora pelos
porões. Prefere a alcunha “Carteira Preta”, referência à sua bolsa de couro com
a identificação de “meganha”.
Quando organizou a chacina na chácara São Bento, em
parceria com Cabo Anselmo, ambos eram infiltrados na VPR. Militantes foram
detidos em várias partes do Recife, e alguns já chegaram à chácara moribundos.
Os homens de Fleury executaram o crime.
O delegado admite ter participado da logística da
operação, mas nega ter atirado nos militantes. Ele insiste na versão oficial,
segundo a qual houve troca de tiros entre guerrilheiros e polícia, embora a
perícia tenha mostrado que todos morreram com balaços na cabeça, num claro
sinal de execução.
Augusto diz que agiu para salvar a vida de Anselmo,
cuja identidade de agente duplo havia sido descoberta pelos militantes da VPR.
“Eu estava defendendo o Brasil. Defendi naquela época,
como defendo agora. Agi em legítima defesa, minha e de terceiros”, disse. A
conversa com a Folha foi acompanhada por um homem de óculos escuros,
impassível, apresentado pelo delegado como segurança.
“A esquerda, covarde ainda hoje, quer mudar a história
do país”, continua Augusto. “Só cumpri com meu dever funcional, não participei
de nenhum crime. Pode escrever aí: contra a pátria não há direitos. O único
crime que não prescreve é o terrorismo.”
Testemunhos de presos políticos indicam ainda que
Augusto está por trás do desaparecimento de Edgar Aquino Duarte, visto pela
última vez no Dops de São Paulo, em junho de 1973. Ex-marinheiro como Anselmo,
Duarte era próximo do agente duplo. Estiveram juntos nos eventos que culminaram
na revolta dos marinheiros, semanas antes do golpe de 1964.
Duarte sumiu após marcar um encontro com Anselmo,
segundo o dossiê “Direito à Memória e à Verdade”, elaborado em 2007 pela
Presidência da República. “Pode ser que esteja vivo, como muitos outros”,
ironiza o delegado.
A amizade de Augusto e Anselmo perdura: aquele é uma
espécie de tutor deste, que vive escondido, temendo vingança. Na semana
passada, a Comissão de Anistia do governo federal negou a Anselmo indenização
política, pedida sob alegação de perseguição pela ditadura, e reincorporação à
Marinha. Documentos mostram que ele colaborava com os militares pelo menos
desde 1964.
USTRA Enquanto Augusto atuava sob comando de Fleury,
Dirceu Gravina era chefiado pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante
Ustra, no DOI-Codi de São Paulo.
Considerado torturador pela Justiça, em ação que tenta
derrubar, Ustra é dos mais notórios ex-agentes da repressão. Ele nega os crimes
e rebate as várias denúncias no livro “A Verdade Sufocada” (2006).
Chefe e auxiliar foram denunciados, no mês passado,
pelo Ministério Público Federal pelo crime de sequestro qualificado, ação
rejeitada pela Justiça na última quarta. Foram implicados no desaparecimento do
bancário e sindicalista Aluízio Palhano, em 1971.
Os ex-presos políticos Altino Dantas e Lenira Machado,
detidos no DOI-Codi de São Paulo, fizeram denúncia formal contra Gravina:
Palhano foi morto após ser torturado pelo delegado, com a aquiescência de
Ustra. Eles negam.
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Deputado Adriano Diogo |
Ustra falou à Folha sobre Gravina: “Era um agente
muito bom, responsável e cumpridor de suas obrigações”. Conhecido pelos
codinomes JC e Jesus Cristo, por causa da barba que usava à época, Gravina
também foi relacionado pelo grupo Tortura Nunca Mais como responsável pelas
mortes de Lauriberto Reyes e Alexânder Voerões, em São Paulo, em 1972. A
entidade acusa o delegado de metralhar os militantes. Há outros relatos de torturas e maus-tratos, incluindo
o do atual deputado estadual Adriano Diogo - PT (foto) , presidente da Comissão da
Verdade paulista: “JC me prendeu, em 1973. Já chegou batendo. Tomei uma
coronhada de metralhadora dele no olho direito, apanhei muito no camburão e fui
recebido na prisão por um corredor polonês”.
Diogo adianta que a comissão pedirá ao governo de São
Paulo o afastamento dos delegados, “para mostrar aos jovens oficiais que a
tortura não é compatível com a atividade policial”. Militares da reserva e
ex-policiais, no entanto, criticam a imparcialidade do presidente do colegiado,
alegando desequilíbrio no fato de um ex-preso político investigar seu algoz.
Um parêntese: na comissão federal, nenhum dos sete
membros foi seviciado nos porões. O alvo de maior reclamação foi a indicação de
Rosa Maria Cardoso, ex-advogada da então guerrilheira Dilma Rousseff, que
passou algumas horas detida, no início dos anos 70, por defender presos
políticos.
CONVOCAÇÃO Carlos Alberto Augusto e Dirceu Gravina
devem ser convocados nas próximas semanas, enquanto a comissão paulista analisa
documentos e colhe informações de familiares de desaparecidos. “Se há evidência
de que cometeram atos de tortura trabalhando para Fleury e Ustra, nada impede
uma investigação por parte da Corregedoria de Polícia e um ato administrativo
para expulsá-los”, afirma Anthony Pereira.
Procurada pela Folha, a Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo, responsável pela Polícia Civil, não se manifestou.
“A Justiça precisa resolver essas questões”, diz
Gravina, por telefone, de Presidente Prudente, onde também trabalha com
professor de direito da Unioeste. “São acusações. E esse não é o momento
oportuno de falar.”
Em 2008, após a revista “CartaCapital” publicar
reportagem sobre os crimes atribuídos a Gravina, a Procuradoria de São Paulo o
denunciou em ação civil pública e pediu sua suspensão da polícia, mas o pedido
foi rejeitado pela Justiça.
“O que eles [a esquerda] dizem é outra história. Sou
funcionário público, tenho que trabalhar no que o Estado manda, entendeu? Se
tivesse cometido crime, não poderia estar arrependido”, afirma Gravina. Ele não
quis fazer comentários sobre as comissões da verdade.
“Num país de mentira, você acredita em Comissão da
Verdade?”, indaga Carlos Alberto Augusto. Ele diz que, mesmo assim, vai depor.
Afirma que poderá expor o que sabe sem medo de sofrer represálias de seus
chefes na polícia -algo que, segundo ele, acontece atualmente.
Os dois eram amigos, mas estão rompidos faz alguns
anos. Gravina não toca no assunto.
Augusto, já de saída do prédio da avenida Ipiranga,
com a pochete a tiracolo, diz que não fala com o amigo porque ele não defende
publicamente o seu passado na repressão. “A questão, filho, é que ele não põe a
cara para bater, entendeu?”
Augusto atuou no Dops de 1970 e 1977, período em que
foi subordinado a Sérgio Paranhos Fleury. Ele venera o ex-chefe a ponto de
organizar encontros e missas em sua memória
“Só cumpri com meu dever funcional, não participei de
nenhum crime”, diz Augusto. “Contra a pátria não há direitos. O único crime que
não prescreve é o terrorismo.”
“JC me prendeu em 1973. Já chegou batendo”, diz o
deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), cuja participação na Comissão da
Verdade paulista é criticada por ex-militares.
Fonte-Folha de S.Paulo