BBC Brasil - A
recusa do Supremo Tribunal Federal de reinterpretar a Lei de Anistia não encerrou
o assunto?
Marlon Weichert |
Marlon Weichert - Não. A decisão da
Corte Interamericana foi emitida depois disso e diz que a anistia não pode
barrar punições por violações graves. Ao reconhecer a jurisdição da Corte, o
Brasil aceitou que houvesse um duplo crivo para a análise de casos de abusos
aos direitos humanos no país. A Lei de Anistia não passou pelo segundo crivo.
BBC Brasil - Mas a
decisão da Corte foi ignorada pelo Brasil...
Weichert - Para nós, do
MP, a decisão foi um divisor de águas e somos um órgão do Estado. Hoje mais de
70 investigações estão em curso para embasar ações criminais contra policiais e
militares - e a maioria foi aberta no último ano.
BBC Brasil - O que
mais está sendo feito?
Weichert - Foram
formados dois grupos de trabalho no qual estão trabalhando de 20 a 30
promotores. Um para ações civis e outro para criminais. O primeiro grupo abriu
oito processos contra torturadores e pessoas que ajudaram a ocultar corpos e há
mais dez investigações em curso. Pedimos que agentes da repressão sejam impedidos
de exercer cargos públicos, tenham seus proventos de aposentadoria cassados e
sejam obrigados a repor aos cofres públicos indenizações pagas a vítimas e
familiares.
O segundo grupo
toca essas 70 investigações criminais. Duas ações já foram requeridas na Justiça
[contra Ustra e o coronel reformado Sebastião Curió]. Por enquanto, os juízes
não têm sido favoráveis, mas esperamos uma mudança.
Marlon Weichert |
BBC Brasil - Há
consenso sobre o tema no Ministério Público?
Weichert - Não. Mas os
promotores agem com independência. Quando começamos a buscar desaparecidos só
eu e uma colega apoiávamos ações criminais. Agora, metade dos promotores parece
ser favorável a essa posição. Além disso, no ano passado a Coordenação dos
Direitos Humanos e a de Direito Criminal do MP estabeleceu que deveríamos
cumprir a decisão da Corte Interamericana.
BBC Brasil - Como
essas investigações se articulam com a Comissão da Verdade?
Weichert - Pode haver
uma sinergia [entre as investigações], embora não haja dependência. Nossas
investigações têm por base pesquisa documental e depoimentos das vítimas.
BBC Brasil - Mas
por que o empenho do Ministério Público nesse momento? Por que os juízes
mudariam de ideia?
Weichert - A Constituição
atribuiu ao MP o dever de defender os direitos humanos e buscar ações penais. É
nossa obrigação abrir esses processos. Hoje há preconceito dos juristas
brasileiros com o direito internacional. Temos uma cultura jurídica de 50 anos
atrás. Mas vários países passaram por essa transição e acabaram aceitando a
autoridade do direito internacional. No Brasil não será diferente. Na pior das
hipóteses em quatro ou cinco anos a decisão da Corte Interamericana acabará
sendo cumprida. E mesmo antes disso teremos decisões favoráveis.
BBC Brasil - O
Brasil começou sua política de reparações pelas indenizações financeiras.
Desembolsou mais de R$ 2 bilhões antes que uma comissão da verdade abrisse o
debate sobre os danos a serem reparados. Além disso, as maiores indenizações
não foram para parentes dos mortos, mas para aqueles forçados a abandonar altos
cargos no período autoritário. Isso tudo não prejudicou a causa das vitimas
frente a opinião pública?
Weichert - Talvez esse
não tenha sido o melhor caminho, mas foi o caminho possível. Não há receita de
bolo para se fazer "justiça de transição". No caso da política de
indenizações, o problema foi o desenho das leis que a definem.
BBC Brasil - O que
esperar da Comissão da Verdade?
Weichert - Ela cumpre um
papel crucial, embora sem punições seu trabalho estaria incompleto. A punição
de uma pessoa dissuade outras de cometerem o mesmo crime e ajuda a prevenir de
forma geral as violações aos direitos humanos. Ainda assim, a comissão pode ter
um grande impacto se ajudar a acabar com os enclaves autoritários nas
instituições brasileiras. Ainda temos estatutos escritos na ditadura regendo a
ação de militares e policiais.
Antony Pereira - King's College |
BBC Brasil - O
brasilianista Anthony Pereira, do King's College, diz que o Judiciário
brasileiro é reticente em aceitar processos contra militares porque muitos
perseguidos políticos passaram pelos tribunais durante o regime. Como vê essa
tese?
Weichert - O Judiciário precisa
fazer uma autocrítica ao seu papel no regime. O fato de o Congresso e a Justiça
continuarem ativos deu uma fachada de legalidade à ditadura e hoje complica a
depuração do que aconteceu no Brasil - porque no imaginário de parte da
sociedade não houve ruptura. Por isso é importante que a Comissão da Verdade
promova uma avaliação do papel das instituições no regime militar. Ela poderia
convidar não só o Judiciário, mas também o MP e outras instituições para tentar
entender por que aderiram a um sistema arbitrário ilegal.
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