quarta-feira, 4 de julho de 2012

Entrevista a BBC Brasil


BBC Brasil - A recusa do Supremo Tribunal Federal de reinterpretar a Lei de Anistia não encerrou o assunto?
Marlon Weichert
Marlon Weichert - Não. A decisão da Corte Interamericana foi emitida depois disso e diz que a anistia não pode barrar punições por violações graves. Ao reconhecer a jurisdição da Corte, o Brasil aceitou que houvesse um duplo crivo para a análise de casos de abusos aos direitos humanos no país. A Lei de Anistia não passou pelo segundo crivo.
BBC Brasil - Mas a decisão da Corte foi ignorada pelo Brasil...
Weichert - Para nós, do MP, a decisão foi um divisor de águas e somos um órgão do Estado. Hoje mais de 70 investigações estão em curso para embasar ações criminais contra policiais e militares - e a maioria foi aberta no último ano.
BBC Brasil - O que mais está sendo feito?
Weichert - Foram formados dois grupos de trabalho no qual estão trabalhando de 20 a 30 promotores. Um para ações civis e outro para criminais. O primeiro grupo abriu oito processos contra torturadores e pessoas que ajudaram a ocultar corpos e há mais dez investigações em curso. Pedimos que agentes da repressão sejam impedidos de exercer cargos públicos, tenham seus proventos de aposentadoria cassados e sejam obrigados a repor aos cofres públicos indenizações pagas a vítimas e familiares.
O segundo grupo toca essas 70 investigações criminais. Duas ações já foram requeridas na Justiça [contra Ustra e o coronel reformado Sebastião Curió]. Por enquanto, os juízes não têm sido favoráveis, mas esperamos uma mudança.
Marlon Weichert
BBC Brasil - Há consenso sobre o tema no Ministério Público?
Weichert - Não. Mas os promotores agem com independência. Quando começamos a buscar desaparecidos só eu e uma colega apoiávamos ações criminais. Agora, metade dos promotores parece ser favorável a essa posição. Além disso, no ano passado a Coordenação dos Direitos Humanos e a de Direito Criminal do MP estabeleceu que deveríamos cumprir a decisão da Corte Interamericana.
BBC Brasil - Como essas investigações se articulam com a Comissão da Verdade?
Weichert - Pode haver uma sinergia [entre as investigações], embora não haja dependência. Nossas investigações têm por base pesquisa documental e depoimentos das vítimas.
BBC Brasil - Mas por que o empenho do Ministério Público nesse momento? Por que os juízes mudariam de ideia?
Weichert - A Constituição atribuiu ao MP o dever de defender os direitos humanos e buscar ações penais. É nossa obrigação abrir esses processos. Hoje há preconceito dos juristas brasileiros com o direito internacional. Temos uma cultura jurídica de 50 anos atrás. Mas vários países passaram por essa transição e acabaram aceitando a autoridade do direito internacional. No Brasil não será diferente. Na pior das hipóteses em quatro ou cinco anos a decisão da Corte Interamericana acabará sendo cumprida. E mesmo antes disso teremos decisões favoráveis.
BBC Brasil - O Brasil começou sua política de reparações pelas indenizações financeiras. Desembolsou mais de R$ 2 bilhões antes que uma comissão da verdade abrisse o debate sobre os danos a serem reparados. Além disso, as maiores indenizações não foram para parentes dos mortos, mas para aqueles forçados a abandonar altos cargos no período autoritário. Isso tudo não prejudicou a causa das vitimas frente a opinião pública?
Weichert - Talvez esse não tenha sido o melhor caminho, mas foi o caminho possível. Não há receita de bolo para se fazer "justiça de transição". No caso da política de indenizações, o problema foi o desenho das leis que a definem.
BBC Brasil - O que esperar da Comissão da Verdade?
Weichert - Ela cumpre um papel crucial, embora sem punições seu trabalho estaria incompleto. A punição de uma pessoa dissuade outras de cometerem o mesmo crime e ajuda a prevenir de forma geral as violações aos direitos humanos. Ainda assim, a comissão pode ter um grande impacto se ajudar a acabar com os enclaves autoritários nas instituições brasileiras. Ainda temos estatutos escritos na ditadura regendo a ação de militares e policiais.
Antony Pereira - King's College
BBC Brasil - O brasilianista Anthony Pereira, do King's College, diz que o Judiciário brasileiro é reticente em aceitar processos contra militares porque muitos perseguidos políticos passaram pelos tribunais durante o regime. Como vê essa tese?
Weichert - O Judiciário precisa fazer uma autocrítica ao seu papel no regime. O fato de o Congresso e a Justiça continuarem ativos deu uma fachada de legalidade à ditadura e hoje complica a depuração do que aconteceu no Brasil - porque no imaginário de parte da sociedade não houve ruptura. Por isso é importante que a Comissão da Verdade promova uma avaliação do papel das instituições no regime militar. Ela poderia convidar não só o Judiciário, mas também o MP e outras instituições para tentar entender por que aderiram a um sistema arbitrário ilegal.

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