Um passado de terror na memória
O jornal Estado de Minas
publicou em reportagem do dia 21 de junho e assinada pela jornalista Sandra
Kiefer sobre os horrores da ditadura militar no Brasil, que tem, entre os
entrevistados, a militante do PCdoB, Gilse Cosenza (foto), a primeira vítima do regime
de exceção indenizada e que conta as barbáries sofridas nos porões das prisões. Com o título “Relatos de horror sobre a
ditadura estão escondidos no anonimato”, a reportagem tem a colaboração do
jornalista Luiz Ribeiro(foto):
Dilma Roussef na segunda à direita de branco |
“O depoimento pessoal de Dilma Rousseff, (foto em preto e branco com um roupão branco) que 30 anos depois de sofrer tortura em Juiz de Fora seria eleita presidente do Brasil, é apenas uma parte num conjunto de 916 peças de horror que estavam até agora esquecidas na última sala do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), no Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte.
Nesse teatro de barbárie e agonias, não há protagonistas. São histórias de centenas de militantes políticos de Minas torturados na frente de seus bebês, homens casados que se tornaram estéreis por levar choque nos órgãos genitais e mulheres que seriam violadas no anonimato das celas pelos seus algozes.
Uma das técnicas mais sádicas de tortura era a da “latinha”. “A primeira coisa que eles faziam era arrancar a roupa da gente e deixar completamente nua. Depois, colocavam descalça em cima de duas latinhas abertas, como a de salsicha, com as bordas afundando no pé. A gente tinha de aguentar até não poder mais. Se caísse ou descesse, era espancada por eles. Era um tipo de crueldade abaixo do nível humano. Era bestial”, revela o trecho de uma das vítimas, que permanece aqui no anonimato. Outro “método” relatado nas prisões mineiras não envolvia
o emprego da violência física. Na verdade, nem precisava. Seu teor era psicológico.
Era usada principalmente com mães ou grávidas.
Tortura utilizada nos órgãos genitais |
Tratava-se de colocar uma
criança engatinhando em cima de uma mesa para forçar a “confissão” da
torturada. Caso ela não falasse, o torturador avisava que a criança poderia
cair. “Manusearam meu corpo, torceram o bico dos meus seios e enfiaram a mão em
mim. Um dia, eu estava arrebentada depois de ter sido torturada das 19h até as
5h da manhã quando fui estuprada pelo sargento Leo, da PM”, conta Gilse Westin
Cosenza, hoje aos 68 anos, a primeira da lista de 53 pessoas indenizadas pela
comissão mineira, em 2002.
Gilse Cosenza |
Filha
Quando foi presa, aos 25 anos, Gilse era
vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da PUC Minas. Ela foi
levada para a cadeia com o marido, o vice-presidente do DCE da UFMG, o
estudante de economia Abel Rodrigues Avelar. Os dois pertenciam à organização
Ação Popular (AP). De todas as sessões de humilhação sofridas pela então
estudante do curso de serviço social, para Gilse a pior envolveu a filha
Juliana, aos 4 meses. “A passagem mais barra pesada, de tudo o que relatei à
comissão de Minas, envolveu minha filha, que hoje está bem, tem 43 anos, é
analista de sistemas e trabalha no TRE, no Rio de Janeiro. Na época, eles quase
me enlouqueceram dizendo que iriam pegá-la, que eles iriam encontrá-la onde ela
estivesse e que eu deveria falar o que eles queriam ouvir. Com todas as minhas
forças, eu desejei ficar louca antes”, desabafa a militante, que 15 dias antes
de ser presa havia entregado o bebê à irmã Gilda, casada com Henrique Sousa
Filho, o cartunista Henfil, que ela chama de Henriquinho.
Ao reencontrar a filha, Juliana estava perto
de completar 2 anos. Só então aprendeu a falar mamãe e papai, conhecendo os
próprios pais. No longo período em que permaneceu presa, Gilse não apenas não
enlouqueceu, como também nunca desistiu de lutar pela volta da democracia no
Brasil. “Sou privilegiada. Muitos ficaram afetados psicologicamente pela
tortura e nunca conseguiram se reerguer. Em cada uma das famílias brasileiras
que viveram na nossa época, é rara aquela que não tem uma pessoa morta,
torturada, banida do país ou que tenha perdido o emprego durante o regime
militar”, compara. Ela promete: “Os torturadores ainda estão impunes. Jurei que
enquanto estiver viva não vou parar de lutar por um país justo para nossos
filhos”.
Exemplo de vida
Quando flagra uma manifestação na praça
principal de Teófilo Otoni, o ex-militante da causa operária Tim Garrocho, com
a autoridade que lhe concedem seus 82 anos, não consegue se segurar.
Aproxima-se dos manifestantes, puxa um deles no canto, pelo braço, e diz ao pé
do ouvido: “Você pode até não saber disso, mas ajudei vocês a estarem hoje
reunidos aqui na praça”. Celebridade no Vale do Mucuri, Tim é exemplo de vida
para os três filhos legítimos (ganhados antes de ficar preso em 12 locais
diferentes), três filhos adotivos, cerca de 20 netos e cinco bisnetos. Segundo
Tim, o operário que mais apanhou em Minas foi o Porfírio Francisco de Souza.
“Eu o vi entrando na prisão, ainda forte, e no final, irreconhecível”, afirma.
Porfírio, militante do extinto Partido
Comunista Brasileiro (PCB), morreu em 2004 em Montes Claros, aos 84 anos. “Além
de choques elétricos e ter levado no pau de arara, ele sofreu com agulhadas nos
dedos, entre as unhas. Chegaram até a arrancar as unhas dele na sede do antigo
Dops, em BH, em 1969, logo depois do AI-5”, conta o aposentado e ex-soldado da
Polícia Militar Aran Francisco de Matos, de 65, sobrinho do ex-militante.
Sangue
“Aquela cambada não respeitava ninguém. Em
Governador Valadares, quebraram meu braço esquerdo e me chutaram até eu vomitar
sangue”, revela, sem esconder a raiva, Tim Garrocho, ex-líder sindical, que
antes de ser preso chegou a ter três mandatos de vereador. “Depois do golpe,
não pude crescer politicamente. Eles me liquidaram, minha esposa ficou
adoentada e eu tive de vender muita coisa para me sustentar. Hoje não tenho nem
aposentadoria, pois não consegui comprovar meus direitos políticos”, afirma.
Com a terceira matéria sobre a tortura de Dilma nas mãos, Tim Garrocho, que
acompanha desde a primeira, dá sua opinião. “Se a presidente tem memória de
elefante, a minha é de 100 elefantes. Meu torturador era Klinger Sobreira de
Almeida, que na época era tenente em Valadares. Antes de bater, ele tirava o
relógio, para não se machucar. Não me esqueço disso”.
Fonte - Vermelho
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