A nova face do terror
3 de junho de 1970
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Capitão Carlos Lamarca |
Pelos trejeitos e pelo tom da voz parecia
realmente um cabeleireiro homossexual que entrava na clínica especializada
pedindo uma operação plástica. Poucos dias depois, porém, descobriu-se que o
cavalheiro de modos suaves que desejava tomar mais delicadas as linhas de seu
rosto duro era Carlos Lamarca, um dos homens mais importantes do terrorismo no
Brasil.A operação plástica de Carlos Lamarca, feita num hospital no Rio, onde
foi apresentado com documentos falsos por médicos ligados ao movimento
subversivo, era um dos segredos que as autoridades encarregadas da repressão ao
terror no Rio mantinham até hoje em completo sigilo. Segundo essas autoridades,
a ida de Lamarca ao Rio e especialmente sua decisão de modificar a aparência
revelam uma ousadia próxima do desespero.
Lamarca estaria sentindo
cada vez mais dificuldade em circular nas cidades, onde o cerco em torno dele
está sempre mais apertado. Num trabalho minucioso, as investigações e as
informações obtidas de outros terroristas presos têm permitido que seus passos
sejam seguidos bem de perto.
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Capitão Lamarca e uma guerrilheira |
Recentemente, Lamarca foi visto no interior do
Paraná, onde uma enfermeira que o conhecia bem o descreveu como um "homem
envelhecido, com o rosto desfigurado e sem dentes". Posteriormente, sua
passagem foi marcada numa cidade do Estado do Rio, onde manteve contatos com
outros elementos do seu grupo. E nas últimas semanas surgiram indícios claros
da presença de Lamarca, com um grupo de terroristas, nos campos de treinamento
de guerrilha localizados no Vale do Ribeira, no sul de São Paulo. Lamarca
estaria no Vale do Ribeira junto de uma companheira para tentar organizar um
centro de treinamento de guerrilheiros.
OS
PLANOS DE GUERRILHA - Um
subversivo preso há três ou quatro meses no Rio dera informações imprecisas
sobre os planos para instalar um centro de treinamento naquela região. Foi
feita uma sondagem no Vale do Ribeira, sem resultados. Pouco mais de um mês
atrás, outro terrorista detido voltou a falar sobre os campos de treinamento e
forneceu os nomes de uma rede de terroristas que fazia o contato entre o Vale
do Ribeira e outros elementos no Rio e São Paulo.
Essa
informação desencadeou uma operação militar de envergadura que teve, segundo as
autoridades, resultados positivos, já que apressou o desbaratamento da VPR
(organização terrorista ligada a Carlos Lamarca), que aparentemente pretendia
reorganizar-se para uma nova missão, a guerrilha rural.
Esses planos, provavelmente organizados pelo próprio Carlos
Lamarca, não chegaram a surpreender as autoridades. Quando ainda oficial da
ativa, no 4º Regimento de Infantaria, de Quitaúna (SP), Lamarca participou de
vários treinamentos antiguerrilha naquela região. E em cartas apreendidas entre
subversivos, encontradas em "aparelhos" no Rio e São Paulo, a
instalação de um centro de treinamento para guerrilha está nos planos da VPR.
Nem mesmo a possível presença de sua companheira naquela região poderia ser
considerada como uma surpresa - no seu livrinho "Caminhos da
Guerrilha", que tem circulação entre elementos ligados à subversão,
escreve Carlos Lamarca: "0 guerrilheiro tem que trabalhar junto ao
camponês, acordando cedo e trabalhando dez horas por dia com qualquer tempo. De
preferência, deve ir para a região com a mulher, pois o camponês desconfia dos
solteiros. Acha que procura relacionamento para conquistar-lhe a filha. Tem que
assimilar o costume, a moral, enfim adaptarse completamente. Inicialmente, o
camponês provocará para que o estranho se defina. Desconfia dele, normalmente,
de infiltração policial e de estudantes".
0 livro de Carlos Lamarca, uma brochura magra, impressa em
mimeógrafos, assinado sob pseudônimo de "Cid" e repleto de
considerações sobre subversão armada e de críticas à atuação de outros grupos,
foi um achado precioso para as autoridades.
Um exemplar do livro, datado de outubro de 1969, com uma citação
de Mao Tsé-tung na capa ("Negai vossas ilusões e preparai-vos para a
luta"), foi encontrado em um "aparelho" no Rio.
Em outro trecho escreve Carlos Lamarca, numa tentativa para
justificar a violência: "... passa a ter um caráter educativo, quando
ficar nítido que quem explorar deve morrer e quem permite que se explore também
morra. Não há por que aceitar o humanismo burguês e as limitações devem ser
unicamente de repercussão política (por enquanto); o humanismo marxista
fundamentado na luta de classes é o único permissível".
OS PLANOS IMPOSSÍVEIS - A decisão de Lamarca de instalar centros
de treinamento de guerrilha, tentando diversificar os métodos da subversão
violenta, até agora mais preocupada com assaltos a bancos e atentados nas
cidades, e a sua preocupação "literária" somente revelada agora
seriam indicações de que o ex-capitão poderia surgir como um possível líder
dentro das várias organizações terroristas? As autoridades acreditam que, se esses
objetivos estão nos seus planos, são provavelmente irrealizáveis. A implantação
de um foco guerrilheiro no Vale do Ribeira não traria riscos imediatos para a
segurança. A área foi imediatamente cercada e, segundo as autoridades militares
que acompanham as operações, não existiria a menor possibilidade de os
terroristas conseguirem êxito apreciável. Segundo uma fonte militar, seriam
necessários muitos focos guerrilheiros, instalados em regiões de
características muito favoráveis (são poucas no Brasil), para se considerar a
situação como grave. E as tentativas de doutrinação feitas por Lamarca no seu
livro e em cartas apreendidas pelas autoridades (numa letra miúda, quase
infantil, Lamarca vem mantendo uma constante correspondência com outros
terroristas) se têm restringido apenas aos elementos de sua própria
organização. Boa parte dessas cartas - que as autoridades estão convictas de
serem de Lamarca - dedica-se a uma autocrítica, às vêzes muito severa, dos
esquemas subversivos. Nelas, pacientemente, Lamarca anota as deficiências de
sua organização, algumas delas evidentemente insanáveis. Numa carta, ele
classifica como suicídio a incapacidade de obterem simpatizantes e
colaboradores para a formação dos chamados "quadros legais" -
subversivos ainda não identificados que atuariam como "doutrinadores"
entre estudantes e operários para organizar "movimentos de massa". Em
outras, Lamarca analisa o comportamento de elementos do grupo que reclamam da
vida difícil que um terrorista é obrigado a levar, sem conforto, correndo riscos
permanentes e sem tempo para "gozar os prazeres de uma vida
burguesa".
CENSURA SUBVERSIVA - Julgando um documento redigido por um
elemento do grupo (queixas amargas feitas por uma militante na época em que a
VPR começava a se estruturar, onde classifica a organização como "alienada
e alienante"), Carlos Lamarca redigiu uma espécie de circular para outros
membros do grupo (veja a reprodução ao lado) onde condena a companheira e
levanta o problema da censura interna na organização. Mais recentemente, escreveu
sobre o seqüestro do cônsul japonês em São Paulo, analisando os nomes dos cinco
subversivos exigidos como resgate. Dá muita importância a Shizuo Ozawa, o
"Mário Japa", elemento que mais conhece o dispositivo de contatos com
o exterior, principalmente Cuba.
Documentos como esse, mostrando as ligações dos subversivos e
dos seus vários grupos ou facções com movimentos internacionais, são
considerados de grande importância para as autoridades militares. Embora para
boa parte da população essas ligações sejam evidentes, as autoridades
consideram que as justificativas usadas pelos subversivos, classificando seus
atos como "luta contra a ditadura" ou "contra a Revolução",
podem soar como argumentos capazes de iludir certas áreas. Elas têm em seu
poder uma quantidade muito grande de provas dessas ligações internacionais do
movimento subversivo que apenas se sustenta, depois da série de derrotas
sofridas, através de articulação e ajuda financeira externa pelo menos para os
grupos mais importantes e encaminhada aos escalões mais elevados. Ainda segundo
as autoridades, alguns brasileiros asilados no exterior (são citados
principalmente Miguel Arraes e Leonel Brizola) ajudam indiretamente a subversão
interna, procurando criar uma imagem deformada do Brasil. Essas ligações podem
ser exaustivamente comprovadas por troca de correspondência e nos depoimentos
de muitos subversivos presos. Num documento apreendido recentemente num
"aparelho" do Rio, de autoria de Régis Debray, preso na Bolívia por
atividades subversivas, existe um balanço do movimento terrorista da América do
Sul, especialmente no Brasil, com uma detalhada visão de partidos, frentes e
organizações revolucionárias. Outro documento apreendido, assinado pela
VAR-Palmares (organização criada com a fusão da VPR com o movimento denominado
Colina e, segundo as autoridades, completamente comprometida em seus quadros
pelas prisões já efetuadas), intitulado "Comunicado ao governo e ao povo
cubano", afirma que essa organização procurava "extrair os ensinamentos
básicos dos acontecimentos que convulsionaram Cuba". Nesse documento, os
líderes da VAR-Palmares traçam também um perfil da escalada da subversão no
país, criticando alguns aspectos do movimento. Fazem referências ao PCB, que,
"seguindo a orientação da Internacional, dirigida de Moscou, já na década
de 30 começou a sua marcha para a direita, na crença oportunista do potencial
de uma burguesia nacional". Depois de apontar como inaceitáveis as
posicões do velho partido, critica a posição de outras facções que têm como
tese que "a revolução é nacional e democrática" ou que "a
revolução, além de nacional e democrática, deve atribuir ao proletariado a
tarefa de executar a missão abandonada pela burguesia, na luta armada. 0
caminho dessa luta seria o campo, mas o peso das cidades é muito importante e
não é viável a luta armada sem que primeiro se solidifique a base urbana".
Nesse comunicado, as longas teorizações sobre a ação subversiva são aompanhadas
de frases de efeito: "A VAR-Palmares nasceu com a firme disposição de
empunhar seu fuzil até a destruição final do capitalismo internacional",
ou, então, "hoje não se faz política sem fuzil e o fuzil sem política é o
fanatismo religioso e inconseqüente".
O HEROÍSMO INÚTIL - Que chances teriam essas teses de serem
aplicadas na prática, no Brasil? 0 próprio documento da VAR-Palmares ao povo
cubano admite que "é necessário um poderio muito grande para iniciar a
luta armada no país. Uma pequena organização contando com a boa vontade dos
seus militantes, só pode dar origem a alguns heróis mortos". E haveria
condições para a implantação de uma guerrilha rural duradoura no país? As
autoridades militares ouvidas por VEJA na Guanabara acreditam que não. As
várias tentativas para se organizar um movimento armado no campo fracassaram até
agora. Os acontecimentos das últimas semanas no Vale do Ribeira parecem indicar
mais um fracasso. Embora nem mesmo tenha chegado à guerrilha, limitando-se a
instalar campos de treinamento, a situação do pequeno grupo localizado no Vale
é, segundo as autoridades, bastante precária. Houve um rápido choque entre os
terroristas e as tropas que percorrem a região, mas essa ação tecnicamente não
pode ser interpretada como um ato de guerrilha. Tratava-se apenas de uma
tentativa, feita por um grupo reduzido, de fugir ao cerco armado pelos soldados
do Exército e das polícias militares de São Paulo e do Paraná. Atualmente, os
poucos remanescentes do grupo subversivo parecem aguardar, protegidos pela mata
impenetrável da região, um golpe de sorte para tentarem a fuga. As autoridades
encarregadas de reprimir o terror no Rio e em São Paulo continuam mais
preocupadás com a ação que os subversivos possam exercer nas grandes cidades.
OS GOLPES DA AUDÁCIA - Embora o movimento subversivo tenha
sofrido uma série de derrotas no Rio e São Paulo (sua maior vulnerabilidade
seria a falta de liderança), o que provocou o desmembramento dos seus quadros
em pequenos grupos, muitas vezes sem comunicaçao com os outros, as autoridades
admitem que elementos remanescentes tentem dentro de certo prazo se reagrupar,
ou organizar frentes ou alianças. No Rio, a situação hoje é considerada muito
diferente de seis meses atrás, quando o terrorismo atingia seu clímax com o
seqüestro do Embaixador Charles Elbrick e com a morte do soldado Elias Santos,
fuzilado por terroristas durante uma diligência num "aparelho". Esses
dois episódios ao mesmo tempo revelaram a disposição e a audácia dos
terroristas e motivaram uma reformulação. no mecanismo de combate à subversão
violenta. Esse combate passou a ser coordenado pelo Centro de Operações de
Defesa Interna (CODI), formado por elementos das Forças Armadas e polícia civil
(em São Paulo, o mesmo esquema estava sendo aplicado pela Operação
Bandeirante). De novembro de 1969 até maio deste ano, pelo menos vinte organizações
subversivas foram localizadas e algumas totalmente desarticuladas no Rio, com a
prisão de mais de trezentas pessoas. Na semana passada, as autoridades
divulgaram a prisão do líder de um novo grupo, o PRT (Partido Revolucionário
Trabalhista), chefiado pelo ex-Padre Alípio Cristiano de Freitas. De 41
assaltos a bancos e carros-pagadores, 36 estão solucionados e trinta são de
autoria de terroristas. As autoridades conseguiram ainda evitar uma ação
isolada de um grupo que, no dia 21 de abril, iria seqüestrar um diplomata, numa
operação que, se realizada, teria tanta repercussão como o caso Elbrick: o
grupo foi descoberto e preso dias antes do atentado. Os seguidos insucessos do
terror não são entretanto considerados como uma vitória definitiva. Numa guerra
convencional, depois de uma batalha, somadas as baixas e considerado o valor
estratégico de uma posição conquistada, é fácil saber exatamente até que ponto
as forças do inimigo foram abaladas. Na guerra contra o terrorismo, onde o
inimigo raramente é visto frente a frente, existe sempre a possibilidade de
golpes de audácia bem sucedidos. Às vezes, nem mesmo depois de um ataque se
pode saber quem era o inimigo e quais os seus objetivos. Na semana passada, em
São Paulo, os órgãos de repressão ao terrorismo anunciaram a prisão de uma
quadrilha de assaltantes de banco. Formada por bandidos comuns, ela é apontada
como responsável por mais de duzentos roubos a mão armada, entre eles o assalto
ao carro-pagador da União de Bancos Brasileiros. Nesse assalto foram roubados
517.000 cruzeiros. Esse dinheiro, na intrincada contabilidade dessa guerra,
estava creditado aos terroristas como resultado de sua ação mais importante em
São Paulo. Mas, no mesmo dia em que se divulgava que eles não haviam obtido
essa vitória, os terroristas aparentemente conseguiram dar um novo golpe: um
assalto (190.000 cruzeiros) à agência do Banco do Brasil no Jabaquara, em São
Paulo, acompanhado de panfletos de um grupo subversivo ainda inédito, o
Movimento Revolucionário Tiradentes. Tudo indica porém que, nessa guerra muito
peculiar, o aparecimento de novas frentes de combate e os lances de ousadia,
como a operação de Carlos Lamarca, significam não uma vitória, mas apenas uma
tentativa de continuar lutando.
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