segunda-feira, 25 de junho de 2012

Reportagens- Revista Veja nº 30.806


A nova face do terror
                                                                                                        3 de junho de 1970
Capitão Carlos Lamarca 
 Pelos trejeitos e pelo tom da voz parecia realmente um cabeleireiro homossexual que entrava na clínica especializada pedindo uma operação plástica. Poucos dias depois, porém, descobriu-se que o cavalheiro de modos suaves que desejava tomar mais delicadas as linhas de seu rosto duro era Carlos Lamarca, um dos homens mais importantes do terrorismo no Brasil.A operação plástica de Carlos Lamarca, feita num hospital no Rio, onde foi apresentado com documentos falsos por médicos ligados ao movimento subversivo, era um dos segredos que as autoridades encarregadas da repressão ao terror no Rio mantinham até hoje em completo sigilo. Segundo essas autoridades, a ida de Lamarca ao Rio e especialmente sua decisão de modificar a aparência revelam uma ousadia próxima do desespero.
Lamarca estaria sentindo cada vez mais dificuldade em circular nas cidades, onde o cerco em torno dele está sempre mais apertado. Num trabalho minucioso, as investigações e as informações obtidas de outros terroristas presos têm permitido que seus passos sejam seguidos bem de perto. 

Capitão Lamarca e uma guerrilheira 
Recentemente, Lamarca foi visto no interior do Paraná, onde uma enfermeira que o conhecia bem o descreveu como um "homem envelhecido, com o rosto desfigurado e sem dentes". Posteriormente, sua passagem foi marcada numa cidade do Estado do Rio, onde manteve contatos com outros elementos do seu grupo. E nas últimas semanas surgiram indícios claros da presença de Lamarca, com um grupo de terroristas, nos campos de treinamento de guerrilha localizados no Vale do Ribeira, no sul de São Paulo. Lamarca estaria no Vale do Ribeira junto de uma companheira para tentar organizar um centro de treinamento de guerrilheiros.

OS PLANOS DE GUERRILHA - Um subversivo preso há três ou quatro meses no Rio dera informações imprecisas sobre os planos para instalar um centro de treinamento naquela região. Foi feita uma sondagem no Vale do Ribeira, sem resultados. Pouco mais de um mês atrás, outro terrorista detido voltou a falar sobre os campos de treinamento e forneceu os nomes de uma rede de terroristas que fazia o contato entre o Vale do Ribeira e outros elementos no Rio e São Paulo.
Essa informação desencadeou uma operação militar de envergadura que teve, segundo as autoridades, resultados positivos, já que apressou o desbaratamento da VPR (organização terrorista ligada a Carlos Lamarca), que aparentemente pretendia reorganizar-se para uma nova missão, a guerrilha rural.
Esses planos, provavelmente organizados pelo próprio Carlos Lamarca, não chegaram a surpreender as autoridades. Quando ainda oficial da ativa, no 4º Regimento de Infantaria, de Quitaúna (SP), Lamarca participou de vários treinamentos antiguerrilha naquela região. E em cartas apreendidas entre subversivos, encontradas em "aparelhos" no Rio e São Paulo, a instalação de um centro de treinamento para guerrilha está nos planos da VPR. Nem mesmo a possível presença de sua companheira naquela região poderia ser considerada como uma surpresa - no seu livrinho "Caminhos da Guerrilha", que tem circulação entre elementos ligados à subversão, escreve Carlos Lamarca: "0 guerrilheiro tem que trabalhar junto ao camponês, acordando cedo e trabalhando dez horas por dia com qualquer tempo. De preferência, deve ir para a região com a mulher, pois o camponês desconfia dos solteiros. Acha que procura relacionamento para conquistar-lhe a filha. Tem que assimilar o costume, a moral, enfim adaptarse completamente. Inicialmente, o camponês provocará para que o estranho se defina. Desconfia dele, normalmente, de infiltração policial e de estudantes".
0 livro de Carlos Lamarca, uma brochura magra, impressa em mimeógrafos, assinado sob pseudônimo de "Cid" e repleto de considerações sobre subversão armada e de críticas à atuação de outros grupos, foi um achado precioso para as autoridades.
Um exemplar do livro, datado de outubro de 1969, com uma citação de Mao Tsé-tung na capa ("Negai vossas ilusões e preparai-vos para a luta"), foi encontrado em um "aparelho" no Rio.
Em outro trecho escreve Carlos Lamarca, numa tentativa para justificar a violência: "... passa a ter um caráter educativo, quando ficar nítido que quem explorar deve morrer e quem permite que se explore também morra. Não há por que aceitar o humanismo burguês e as limitações devem ser unicamente de repercussão política (por enquanto); o humanismo marxista fundamentado na luta de classes é o único permissível".
OS PLANOS IMPOSSÍVEIS - A decisão de Lamarca de instalar centros de treinamento de guerrilha, tentando diversificar os métodos da subversão violenta, até agora mais preocupada com assaltos a bancos e atentados nas cidades, e a sua preocupação "literária" somente revelada agora seriam indicações de que o ex-capitão poderia surgir como um possível líder dentro das várias organizações terroristas? As autoridades acreditam que, se esses objetivos estão nos seus planos, são provavelmente irrealizáveis. A implantação de um foco guerrilheiro no Vale do Ribeira não traria riscos imediatos para a segurança. A área foi imediatamente cercada e, segundo as autoridades militares que acompanham as operações, não existiria a menor possibilidade de os terroristas conseguirem êxito apreciável. Segundo uma fonte militar, seriam necessários muitos focos guerrilheiros, instalados em regiões de características muito favoráveis (são poucas no Brasil), para se considerar a situação como grave. E as tentativas de doutrinação feitas por Lamarca no seu livro e em cartas apreendidas pelas autoridades (numa letra miúda, quase infantil, Lamarca vem mantendo uma constante correspondência com outros terroristas) se têm restringido apenas aos elementos de sua própria organização. Boa parte dessas cartas - que as autoridades estão convictas de serem de Lamarca - dedica-se a uma autocrítica, às vêzes muito severa, dos esquemas subversivos. Nelas, pacientemente, Lamarca anota as deficiências de sua organização, algumas delas evidentemente insanáveis. Numa carta, ele classifica como suicídio a incapacidade de obterem simpatizantes e colaboradores para a formação dos chamados "quadros legais" - subversivos ainda não identificados que atuariam como "doutrinadores" entre estudantes e operários para organizar "movimentos de massa". Em outras, Lamarca analisa o comportamento de elementos do grupo que reclamam da vida difícil que um terrorista é obrigado a levar, sem conforto, correndo riscos permanentes e sem tempo para "gozar os prazeres de uma vida burguesa".
CENSURA SUBVERSIVA - Julgando um documento redigido por um elemento do grupo (queixas amargas feitas por uma militante na época em que a VPR começava a se estruturar, onde classifica a organização como "alienada e alienante"), Carlos Lamarca redigiu uma espécie de circular para outros membros do grupo (veja a reprodução ao lado) onde condena a companheira e levanta o problema da censura interna na organização. Mais recentemente, escreveu sobre o seqüestro do cônsul japonês em São Paulo, analisando os nomes dos cinco subversivos exigidos como resgate. Dá muita importância a Shizuo Ozawa, o "Mário Japa", elemento que mais conhece o dispositivo de contatos com o exterior, principalmente Cuba.
Documentos como esse, mostrando as ligações dos subversivos e dos seus vários grupos ou facções com movimentos internacionais, são considerados de grande importância para as autoridades militares. Embora para boa parte da população essas ligações sejam evidentes, as autoridades consideram que as justificativas usadas pelos subversivos, classificando seus atos como "luta contra a ditadura" ou "contra a Revolução", podem soar como argumentos capazes de iludir certas áreas. Elas têm em seu poder uma quantidade muito grande de provas dessas ligações internacionais do movimento subversivo que apenas se sustenta, depois da série de derrotas sofridas, através de articulação e ajuda financeira externa pelo menos para os grupos mais importantes e encaminhada aos escalões mais elevados. Ainda segundo as autoridades, alguns brasileiros asilados no exterior (são citados principalmente Miguel Arraes e Leonel Brizola) ajudam indiretamente a subversão interna, procurando criar uma imagem deformada do Brasil. Essas ligações podem ser exaustivamente comprovadas por troca de correspondência e nos depoimentos de muitos subversivos presos. Num documento apreendido recentemente num "aparelho" do Rio, de autoria de Régis Debray, preso na Bolívia por atividades subversivas, existe um balanço do movimento terrorista da América do Sul, especialmente no Brasil, com uma detalhada visão de partidos, frentes e organizações revolucionárias. Outro documento apreendido, assinado pela VAR-Palmares (organização criada com a fusão da VPR com o movimento denominado Colina e, segundo as autoridades, completamente comprometida em seus quadros pelas prisões já efetuadas), intitulado "Comunicado ao governo e ao povo cubano", afirma que essa organização procurava "extrair os ensinamentos básicos dos acontecimentos que convulsionaram Cuba". Nesse documento, os líderes da VAR-Palmares traçam também um perfil da escalada da subversão no país, criticando alguns aspectos do movimento. Fazem referências ao PCB, que, "seguindo a orientação da Internacional, dirigida de Moscou, já na década de 30 começou a sua marcha para a direita, na crença oportunista do potencial de uma burguesia nacional". Depois de apontar como inaceitáveis as posicões do velho partido, critica a posição de outras facções que têm como tese que "a revolução é nacional e democrática" ou que "a revolução, além de nacional e democrática, deve atribuir ao proletariado a tarefa de executar a missão abandonada pela burguesia, na luta armada. 0 caminho dessa luta seria o campo, mas o peso das cidades é muito importante e não é viável a luta armada sem que primeiro se solidifique a base urbana". Nesse comunicado, as longas teorizações sobre a ação subversiva são aompanhadas de frases de efeito: "A VAR-Palmares nasceu com a firme disposição de empunhar seu fuzil até a destruição final do capitalismo internacional", ou, então, "hoje não se faz política sem fuzil e o fuzil sem política é o fanatismo religioso e inconseqüente".
O HEROÍSMO INÚTIL - Que chances teriam essas teses de serem aplicadas na prática, no Brasil? 0 próprio documento da VAR-Palmares ao povo cubano admite que "é necessário um poderio muito grande para iniciar a luta armada no país. Uma pequena organização contando com a boa vontade dos seus militantes, só pode dar origem a alguns heróis mortos". E haveria condições para a implantação de uma guerrilha rural duradoura no país? As autoridades militares ouvidas por VEJA na Guanabara acreditam que não. As várias tentativas para se organizar um movimento armado no campo fracassaram até agora. Os acontecimentos das últimas semanas no Vale do Ribeira parecem indicar mais um fracasso. Embora nem mesmo tenha chegado à guerrilha, limitando-se a instalar campos de treinamento, a situação do pequeno grupo localizado no Vale é, segundo as autoridades, bastante precária. Houve um rápido choque entre os terroristas e as tropas que percorrem a região, mas essa ação tecnicamente não pode ser interpretada como um ato de guerrilha. Tratava-se apenas de uma tentativa, feita por um grupo reduzido, de fugir ao cerco armado pelos soldados do Exército e das polícias militares de São Paulo e do Paraná. Atualmente, os poucos remanescentes do grupo subversivo parecem aguardar, protegidos pela mata impenetrável da região, um golpe de sorte para tentarem a fuga. As autoridades encarregadas de reprimir o terror no Rio e em São Paulo continuam mais preocupadás com a ação que os subversivos possam exercer nas grandes cidades.
OS GOLPES DA AUDÁCIA - Embora o movimento subversivo tenha sofrido uma série de derrotas no Rio e São Paulo (sua maior vulnerabilidade seria a falta de liderança), o que provocou o desmembramento dos seus quadros em pequenos grupos, muitas vezes sem comunicaçao com os outros, as autoridades admitem que elementos remanescentes tentem dentro de certo prazo se reagrupar, ou organizar frentes ou alianças. No Rio, a situação hoje é considerada muito diferente de seis meses atrás, quando o terrorismo atingia seu clímax com o seqüestro do Embaixador Charles Elbrick e com a morte do soldado Elias Santos, fuzilado por terroristas durante uma diligência num "aparelho". Esses dois episódios ao mesmo tempo revelaram a disposição e a audácia dos terroristas e motivaram uma reformulação. no mecanismo de combate à subversão violenta. Esse combate passou a ser coordenado pelo Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), formado por elementos das Forças Armadas e polícia civil (em São Paulo, o mesmo esquema estava sendo aplicado pela Operação Bandeirante). De novembro de 1969 até maio deste ano, pelo menos vinte organizações subversivas foram localizadas e algumas totalmente desarticuladas no Rio, com a prisão de mais de trezentas pessoas. Na semana passada, as autoridades divulgaram a prisão do líder de um novo grupo, o PRT (Partido Revolucionário Trabalhista), chefiado pelo ex-Padre Alípio Cristiano de Freitas. De 41 assaltos a bancos e carros-pagadores, 36 estão solucionados e trinta são de autoria de terroristas. As autoridades conseguiram ainda evitar uma ação isolada de um grupo que, no dia 21 de abril, iria seqüestrar um diplomata, numa operação que, se realizada, teria tanta repercussão como o caso Elbrick: o grupo foi descoberto e preso dias antes do atentado. Os seguidos insucessos do terror não são entretanto considerados como uma vitória definitiva. Numa guerra convencional, depois de uma batalha, somadas as baixas e considerado o valor estratégico de uma posição conquistada, é fácil saber exatamente até que ponto as forças do inimigo foram abaladas. Na guerra contra o terrorismo, onde o inimigo raramente é visto frente a frente, existe sempre a possibilidade de golpes de audácia bem sucedidos. Às vezes, nem mesmo depois de um ataque se pode saber quem era o inimigo e quais os seus objetivos. Na semana passada, em São Paulo, os órgãos de repressão ao terrorismo anunciaram a prisão de uma quadrilha de assaltantes de banco. Formada por bandidos comuns, ela é apontada como responsável por mais de duzentos roubos a mão armada, entre eles o assalto ao carro-pagador da União de Bancos Brasileiros. Nesse assalto foram roubados 517.000 cruzeiros. Esse dinheiro, na intrincada contabilidade dessa guerra, estava creditado aos terroristas como resultado de sua ação mais importante em São Paulo. Mas, no mesmo dia em que se divulgava que eles não haviam obtido essa vitória, os terroristas aparentemente conseguiram dar um novo golpe: um assalto (190.000 cruzeiros) à agência do Banco do Brasil no Jabaquara, em São Paulo, acompanhado de panfletos de um grupo subversivo ainda inédito, o Movimento Revolucionário Tiradentes. Tudo indica porém que, nessa guerra muito peculiar, o aparecimento de novas frentes de combate e os lances de ousadia, como a operação de Carlos Lamarca, significam não uma vitória, mas apenas uma tentativa de continuar lutando.


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